quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O Ser da Compreensão: Fenomenologia da situação de psicodiagnóstico.


O mundo humano é essencialmente mundo da coexistência. O homem define-se como ser social e o crescimento individual depende, em todos os aspectos, do encontro com os demais.
A psicoterapia, seja qual for a teoria em que se apóia, consiste precisamente em reaprender a lidar com os demais, mediante a interação com o Outro, no caso de terapia de grupo.

Mesmo sem a presença do outro, o ser no mundo é ser com os outros. Estar só é estar privado do outro, num modo deficiente da coexistência, que constitui uma das estruturas do ser no mundo. O conhecimento do outro, pois, supõe a compreensão da existência como ser da coexistência. A relação ontológica como o outro se torna então uma projeção “dentro do outro” da relação ontológica de si para si. “O outro é um duplo si”.
O outro fornece um modelo para construção da imagem de si. Por ser outro, contudo ele também revela que a imagem de si comporta uma parte igual de alteridade.
A ambigüidade da compreensão do outro, que se origina na compreensão do desconhecido que cada um é para si, revela-se em todos os relatos míticos. Todo mito fundamente-se em todos os relatos míticos. Todo mito fundamente-se na duplicidade do mundo, definido como real e irreal ao mesmo tempo. A abordagem mística consagra, mas não resolve o problema da duplicidade. Até a imagem da transcendência assume a dualidade, quiçá a multiplicidade. “O homem é em sua estrutura homo duprex”.
Já a questão do reflexo propõe a existência de um duplo imaterial, idêntico e, contudo inverso.

O tema da dupla personalidade foi excelentemente ilustrado por Otto Rank, que atribui a origem do conceito de alma ao reconhecimento do reflexo. Já Borges aponta para outra fonte do homem duplo: o sonho. Espelho e sonho trazem a vida seres que não existem, e assim fazem o sonhador e o refletido incorrerem em terrível pecado, pois só Deus pode criar seres. O espelho revela-se em sua função Mágica.
Enquanto o espelho cria a imagem, o sonho inaugura o reino do imaginário. O estado de sonho seria contemporâneo de certo nível de complexidade neurológica, acompanhado até mesmo o desenvolvimento do sistema nervoso central. “Jouvet sugere que o feto já sonha”.
O espelho é a porta para visão do outro mundo. O sonho permite a atuação do individuo dentro daquele mundo, movimenta-se, armado cenários e participando em todos, os níveis do fantástico. “O sonho é o teatro onde o sonhador é ao mesmo tempo o ator, o palco, o ponto, o regente, o autor, o público e o crítico”.
Dentro da perspectiva fenomenológica, o significado do sonho está na própria elaboração do relato, entendido como obra do sonhador, retratando a sua realidade. Nesse sentido, Jung situa-se bem próximo a tal colocação. “o sonho é aquilo que é; inteiramente e unicamente aquilo que é; não é uma fachada, não é algo pré-arranjado, um disfarce qualquer, mas uma construção completamente realizada”.
Jung se apoderou do conceito, dando-lhe novo significado e, sobretudo, nova amplitude, já que postula a existência de um consciente comum a todos os homens, e que pode ser alcançado mediante a análise das imagens arquetípicas, chega, porem, a paradoxal conclusão de que não existe conteúdo de consciência que de outro ponto de vista não seja inconsciente. O sonho não é absurdo e nem confuso, confuso é o entendimento do interprete. A ambigüidade não se deve apenas a uma possível limitação intelectual, ou a uma dificuldade intrínseca de abranger a totalidade do real. Prende-se também a causas existenciais.
O sonho denuncia a continuidade e a espessura da vida de vigília, as figuras que nele aparecem, os acontecimentos que se processam, podem ser então considerados como personificações do sonhador, que se revela a si próprio como ser duplo. Jung aponta, por exemplo, a figura da anima, como expressão necessária do outro, para o individuo masculino: “aquilo que não é eu, quer dizer, aquilo que é masculino, é bem provavelmente
feminino, e como o não eu é experimentado como não correspondente ao eu é experimentado como não correspondente ao eu, e portanto como exterior, a imagem da anima é por conseguinte projetada em regar geral sobre mulheres”.
As etapas do processo de individualização, descrita por Jung sobre a forma do encontro com figuras arquetípicas, revelando-se através dos sonhos.
Pode se dizer que, para Jung, cada vez que for negado o fato de que o individuo é ao mesmo tempo uno e múltiplo, abre-se caminho da neurose.
Neste sentido, a função do sonho é precisamente apontar para a realidade. Jung chega a considerar a Máscara – alcunhada pelo seu nome latino de persona como aspecto intrínseco da personalidade.
A máscara aponta para mais uma faceta da duplicidade. O estudo das mascaras utilizadas pela sociedade, ditas primitivas revela uma dimensão oposta, a de encarnar o irreal para integrá-lo na vida diária do grupo. A interpretação das máscaras não se encontra, portanto muito afastada da interpretação dos sonhos, as máscaras são sonhos fixados. “ponha a máscara e te direi quem é... o existir mascarado afirma a duplicidade, assumindo-a”. O desejo de possuir outro rosto expressa novo registro de ambigüidade. É que entre os seres sobrenaturais que os mascarados evocam estão os espíritos dos mortos.
Poder se ia dizer também que a morte é o outro absoluto, é o outro irremediável presente dentro do ser. A única certeza do vivido, a delimitação do seu horizonte temporal.
A psicologia clinica instaurou o culto dos sonhos através da consagração da psicanálise. Observa-se, no entanto que se grande parte da atuação psicoterápica se dedica a interpretação do conteúdo dos sonhos, pouca ação é tributada a própria situação do sonho, como fonte de reconhecimento da ambigüidade existencial. A capacidade de assumir a própria morte dando-lhe significação poderia, portanto ser considerada como parâmetro de avaliação da capacidade de integração da adaptação a realidade. Neste sentido, a assunção da própria morte seria critério de saúde psíquica.
Minkowski insiste sobre o caráter catastrófico irreparável e da loucura. Em certos aspectos aparenta-se ao fenômeno da morte, mas dela difere por ser um acontecimento não necessário. Para a fenomenologia, não há entre o normal e o louco uma diferença de grau, mais sim diferença de natureza.


A loucura manifesta uma ruptura dentro da existência, para a psicopatologia de orientação fenomenológica não se trata do individuo doente, mais do ser diferente. Daí a importância de analisa-se o dinamismo dos percéptos. A contradição entre as informações permite então elaborar um diagnostico mais fiel a realidade, e mais útil para o cliente do que o mero rotulo formal.
Para receber o outro em sua multiplicidade, é preciso aceitar-se como outro. A angustia recorrente da revelação da ambigüidade existencial, fundamentada que está na especificidade real-irreal humana e apoiada na difícil aceitação da realidade para a morte. Mais uma vez o enfoque existencial, sem chegar a ser uma panacéia pode constituir um remédio eficaz contra o psicologismo, ajudado a valorizar a originalidade do individuo. Alteridade e transformação são ao mesmo tempo superadas e expressas através da obra: a fala, a mais geral de todas as obras do homem, e a obra de arte, através da qual o homem a si mesmo se cria e transcende.

"Monique Augras"

Um comentário:

  1. Uma pagina para quem ama sua profissão!
    ...Mesmo sem a presença do outro, o ser no mundo é ser com os outros. Estar só é estar privado do outro, num modo deficiente da coexistência, que constitui uma das estruturas do ser no mundo...
    Te amo!!
    Andressa

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